Quanto de uma população precisa se infectar para que uma pandemia
perca força? Uma contaminação massiva reduz a transmissão da Covid-19? A
infecção é passaporte para a proteção? Por que Fortaleza reabriu as
atividades, e os casos não aumentaram, mesmo que parte dos habitantes,
segundo dados oficiais, ainda não tenha sido exposta ao vírus?
Autoridades de saúde e pesquisadores tentam responder essas e outras
questões. Mas, parte delas segue inconclusiva.
[Atualização às 10h37, de 19/07/2020] Na primeira versão desta
matéria, o Sistema Verdes Mares havia afirmado no título que a imunidade
à Covid-19 no Ceará é incerta. No entanto, a informação se refere
apenas à cidade de Fortaleza.
Estudos feitos em Fortaleza estimam que entre 14% e 20% da população
foi contaminada e têm anticorpos. Contudo, especialistas não recomendam
cogitar a proteção a partir de um contágio massivo - a chamada imunidade
de rebanho - , pois, ressaltam, ainda que há muito desconhecimento
sobre a Covid e as condições que, de fato, asseguram essa imunidade.
No Ceará, moradores de Fortaleza, Sobral, Quixadá, Juazeiro do Norte,
Crateús e Iguatu passaram por pesquisas que medem quanto da população
já teve a doença. São estudos chamados de inquéritos sorológicos. Uma
das análises foi feita pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e
financiada pelo Ministério da Saúde. Outra tem sido realizada na
Capital, Sobral e Iguatu pelo Governo do Estado em parceria com as
prefeituras.
As investigações ocorreram em períodos distintos e têm diferentes
números. Mas, de modo geral, partem de um mesmo conceito. Por meio
delas, uma determinada amostra da população é testada para que seja
identificado o número de pessoas já infectadas naquele território. O
resultado é amplificado para o total dos habitantes de cada cidade de
modo proporcional à população.
Na avaliação nacional, os dados mais recentes foram divulgados no
início de julho e apontaram Sobral como a cidade do Brasil com a maior
proporção de pessoas que têm ou já tiveram a infecção por Covid-19. A
projeção é que 26,4% dos moradores do município da Região Norte estariam
imunizados. O mesmo estudo indicou que, ao menos, 20,20% da população
de Fortaleza foi infectada.
Mapeamento
Já a investigação feita pela Prefeitura de Fortaleza em conjunto com o
Governo Estadual, apontou que 14,2%, dos habitantes da Capital, o
equivalente a cerca de 380 mil pessoas, já contraíram a doença. Mas, é
esse um dos achados carentes de aprimoramento. Pois, esse índice de
contaminados é considerado baixo e se torna mais complexo diante do fato
de Fortaleza não ter registrado novos picos da doença apesar da
reabertura e maior circulação de pessoas.
Para o epidemiologista e gerente da Célula de Vigilância
Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, Antônio
Lima, Fortaleza vive uma situação que tem sido experimentada em outras
cidades do mundo. Há um movimento de queda dos casos sem que se tenha
alcançado a chamada imunidade de rebanho. Em todos as localidades,
explica Antônio, ainda há muitas dúvidas sobre os motivos do não aumento
de confirmações, apesar da reabertura.
"Os inquéritos sorológicos não têm observado
sequer 20% de contaminação, como é o caso de Nova York e Fortaleza.
Nenhum dos inquéritos apresentava mais de 20% ou 25% de desenvolvimento
de anticorpos. Então, essa discussão se construiu a partir daí. Como
algumas cidades conseguiram derrubar o número de casos, sem que tenha
havido repique, quando voltou?".
Antônio esclarece que a constatação da baixa proporção de pessoas
contaminadas pode ter dois motivos: falha nos testes rápidos e, com
isso, a população que desenvolveu anticorpos é maior que do está sendo
estimada nas investigações feitas tanto no Brasil como em outras partes
do mundo; e a hipótese, que ainda tem uma perspectiva mais especulativa,
conforme ele, de que uma fração da população não estaria suscetível ao
vírus. No caso dos números subestimados, Antônio acrescenta, ao invés de
Fortaleza ter 20% da população contaminada, seria 30% ou até 40%.
Imunidade de rebanho
Uma ideia que ganhou ênfase na pandemia é a chamada imunidade de
rebanho. Essa teoria projeta que a imunidade de uma população pode ser
adquirida por meio de vacinação ou por contaminação massiva. Ao se
chegar a um determinado número de indivíduos imunes (por vacina ou
contágio) a transmissão do vírus recua. Diante da atual realidade de
Fortaleza, é possível apostar nessa ideia para a proteger a população?
"A imunidade de rebanho é usada geralmente para planejar a cobertura
vacinal de uma determinada população. Conheço a vacina e tento definir
qual a proporção mínima da população que precisa estar vacinada para
evitar casos ou surtos. Mas, essa doença (Covid) tem uma monte de coisas
em aberto. Levar essa teoria para tomar decisões práticas é
complicado", avalia o infectologista do Hospital São José e professor da
Universidade de Fortaleza, Keny Colares.
A análise é reiterada pelo biólogo, epidemiologista e professor da
Universidade Federal do Ceará (UFC), Luciano Pamplona. "Podemos ou não
aplicar a imunidade de rebanho para o que está havendo com a Covid? Na
minha leitura, não. Porque quando falamos em imunidade de rebanho, falo
em um número grande de pessoas protegidas. Quando pegamos os trabalhos
de prevalência em Fortaleza, que são os estudos mais importantes que
têm, o último mostra que aproximadamente 20% já teve contato com o
vírus. Então, como pensar a imunidade de rebanho se eu tenho 80% da
população suscetível à doença?", questiona.
Outro ponto na qual ainda predominam dúvidas é quanto da população está de fato vulnerável.
"Supomos que todas as pessoas são suscetíveis a
se infectarem, mas, na verdade não temos certeza. Algumas pessoas
defendem que essa doença não é uma doença que 100% da população possa
pegar. Elas podem ter algum tipo de proteção que as deixaria imunes",
explica Keny.
Essa perspectiva, conforme o epidemiologista Antônio Lima, pode ser
uma das dimensões que explica o fato de Fortaleza não ter registrado
aumento de casos após a reabertura. "É outra nuance, em caráter
especulativo, estudiosos do mundo inteiro têm sugerido que existiria uma
fração da população que não estaria suscetível ao vírus".
O presidente da Sociedade Cearense de Infectologia e professor do
Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC,
Guilherme Henn, avalia que o Brasil ainda está muito distante de
"atingir essa imunidade de rebanho" e acrescenta que é muito difícil
medir esse índice. "Quando se faz inquérito sorológico, esse resultado é
muito baixo. E a gente não sabe se é baixo porque realmente não teve
tanta gente que pegou ou porque os testes têm muitos falsos negativos.
No coronavírus, pessoas que têm quadros leves não formam anticorpos em
níveis detectáveis pela sorologia. Não vai aparecer como um resultado
positivo", explica.
Nova contaminação
O infectologista Keny Colares acrescenta que também não há certeza de
qual a situação da imunidade pós-infecção. "Não sabemos, por exemplo,
se a pessoa que teve a Covid, vai ter de novo. Imune é quando a pessoa
não tem mais a doença. Algumas doenças são assim. Você tem uma vez mais e
depois nunca mais vai ter como a catapora e o sarampo, por exemplo". No
entanto, explica ele, a gripe tem uma imunidade parcial e temporária.
Então, a pessoa acometida pela doença, durante alguns meses está
protegida, mas depois pode ter de novo.
No caso do novo coronavírus, os especialistas dizem que há indícios
recentes de que pessoas que tiveram a doença podem ser contaminadas mais
de uma vez. "Não tem nada comprovado ainda. Oficialmente, continuamos
pensando que quem pega a doença, pega só uma vez. Mas isso é
absolutamente passível de ser modificado", reforça o biólogo e
epidemiologista Luciano Pamplona.
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