Egito: O terror espreita no deserto

Jeans cinza, tênis pretos e um míssil terra-ar eram tudo o que se podia ver do homem embaixo de uma árvore à espera da passagem de um helicóptero militar egípcio no início de janeiro de 2014. Ele disparou e a aeronave despencou, momento que foi captado em vídeo pelo grupo que se tornaria o Estado Islâmico na Província do Sinai, e divulgado de maneira triunfal pouco depois.

O ataque serviu de aviso aos militares egípcios e ao resto do mundo: os insurgentes islâmicos do Sinai tinham elevado suas ambições e suas capacidades, adquirido armas e inspiração na espiral de conflitos da região. Se a explosão de um jato da empresa russa Metrojet proveniente de Sharm el-Sheikh se confirmar como obra deles, essas ambições atingiram um novo nível. 

O Cairo há muito luta para controlar as extensões pouco povoadas da Península do Sinai, onde os fundamentalistas islâmicos encontraram refúgio entre contrabandistas, criminosos e outros ávidos para escapar da atenção das autoridades. Mas até pouco mais de uma década atrás era um lugar aonde os militantes iam para se esconder, treinar e tramar, mas não praticavam seus ataques.

Uma mudança de ideologia, as consequências de um racha no governo e o caos nos países vizinhos transformaram a área em um abrigo perigoso em zona de conflito. As facções uniram-se em um grupo, com acesso sem precedentes a dinheiro e armas, e tornou-se a mais ambiciosa franquia do Estado Islâmico fora da Síria ou do Iraque. 
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A prosperidade na região é privilégio de poucos. Créditos: Ed Giles/ Getty Images/ AFP
O grupo reivindicou a responsabilidade pela derrubada do Voo 9268 da Metrojet. O embarque às escondidas de explosivos representa a primeira vez desde 2004 que se usou uma bomba para derrubar um avião. O último desses ataques foi um duplo atentado suicida em 2004, também em jatos russos. 
“Só existe um grupo guarda-chuva, o Wilayat Sina (Província do Sinai). Ele simplesmente reuniu todos os militantes jihadistas da região e de todo o Egito”, explicou Mohannad Sabry, autor do recém-publicado Sinai: Egypt’s linchpin, Gaza’s lifeline, Israel’s nightmare (Sinai: Cavilha do Egito, soro vital de Gaza, pesadelo de Israel, em tradução literal). “Todos se dissolveram sob o guarda-chuva maior do Ansar Bayt al-Maqdis, que começou a operar em 2011 e prometeu fidelidade ao EI em 2014 para ser reconhecido como o ramo mais poderoso do Estado Islâmico fora da Síria e do Iraque.”

Seus afiliados nunca passaram de 500 ou 600, disse ele. “Os elementos militaristas altamente sofisticados não são mais de uma dúzia de integrantes, altamente protegidos. O resto do grupo são simples soldados enviados à linha de frente de suas operações.”

O tamanho relativamente pequeno do grupo oculta seu impacto. Uma série de ataques complexos e mortíferos a quase todos os alvos possíveis na região, de forças do governo, observadores militares internacionais e interesses econômicos a um ônibus de turistas, atraiu a atenção nacional e internacional. Atentados suicidas à bomba a postos de controle do Exército, em outubro e em janeiro e julho deste ano, que fizeram dezenas de vítimas, foram as ações mais sangrentas em tempo de paz contra militares egípcios. 

O último abriu caminho para o grupo dominar uma pequena parte do território pela primeira vez e cimentar sua fidelidade à ideologia do EI de governar e combater. 

A derrubada do helicóptero militar em 2014 anunciou a posse de mísseis avançados pelo grupo, provavelmente contrabandeados da Líbia no caos que se seguiu ao colapso do regime de Muammar Kaddafi, e sua intenção de atingir aeronaves. 

Os sistemas de defesa aérea portáteis não podem atingir jatos de passageiros em altitude de cruzeiro, mas são uma ameaça real a qualquer avião que pouse ou decole em seu raio de alcance, o que poderia incluir o aeroporto de Sharm el-Sheikh. 

No ano passado, o grupo também sinalizou uma expansão de sua guerra, do centro da insurgência ao norte para os balneários turísticos ao sul, com um ataque à bomba a um ônibus que matou três cristãos coreanos e seu motorista. Além do Sinai, células no território egípcio bombardearam sedes da polícia no Cairo e em Mansoura e tentaram assassinar o ministro do Interior.

O rastro de morte e a reação brutal dos militares egípcios chamaram a atenção de um público maior para os problemas do Sinai. Sua crise atual origina-se em parte na geografia inclemente, sua localização crítica no centro de uma região atormentada. Capturada por Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967, ela ficou em poder do país até os Acordos de Camp David abrirem caminho para sua devolução ao Egito.

Hosni Mubarak presidiu essa transferência nos anos 1980, e ao crescimento de Sharm el-Sheikh como resort turístico internacional e destino de férias para a elite do Cairo, que acumulou mansões em suas praias. 
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Os beduínos resistem ao Estado Islâmico, mas não apoiam o Egito. Créditos: Goram Tomasevic/ Reuters/ Latinstock
Talvez por causa das limitações à presença militar egípcia, conforme acordo monitorado por observadores internacionais que ainda patrulham a região, Mubarak pouco fez para seu povo sentir-se parte do país, ou para ter a participação econômica no sucesso. 

Durante décadas, suas lutas com a marginalização econômica e a repressão política foram abafadas por um blecaute virtual das reportagens sobre a região, ou afogadas pela forte promoção das praias ensolaradas dos balneários ao sul. 

Os habitantes tradicionais da área, os beduínos, expulsos de suas terras ancestrais para dar lugar a colonos apoiados pelo governo, excluídos dos acordos para explorar os recursos naturais como petróleo e gás, amontoados em suas velhas casas, talvez tenham a maior lista de reclamações contra o governo.

Não há estatísticas firmes disponíveis, mas com o crescimento do turismo e outras indústrias hoje eles formam menos de metade e talvez até menos de um quarto de seus 500 mil habitantes, segundo o especialista em segurança regional Zack Gold.

As redes de comércio tradicionais tornaram-se rotas de contrabando, em parte por falta de outras oportunidades, o que aumentou ainda mais a distância entre o poder central e os beduínos. Na revolução de 2011, eles foram os primeiros a se levantar, e os mais ferozes combatentes contra o governo. 

Enquanto a desconfiança da autoridade e as rotas de contrabando bem protegidas fizeram do Sinai uma base receptiva para quem visava o Cairo, garantindo-lhes certa simpatia e recrutas locais, os islâmicos no Sinai nunca combateram uma revolta beduína. “Os líderes tribais não incentivam o extremismo violento e, de fato, a atual insurgência islâmica ameaça a estrutura tribal e o bem-estar dos beduínos”, disse Gold.

Particularmente depois de se unirem ao EI, os combatentes da Província do Sinai instigaram o ressentimento com tentativas forçadas de controlar a população local. Eles mataram dezenas de supostos espiões, ameaçaram os líderes tribais considerados opositores e tentaram deter o contrabando de cigarros e maconha, pois ambos são condenados como vícios em sua interpretação linha-dura do Islã. 

Esses ataques e o impacto econômico indireto dos atentados à bomba contra turistas e observadores militares internacionais, os dois maiores empregadores na região, desgastam qualquer simpatia residual dos moradores por um grupo que combate o odiado governo. 

“A comunidade beduína pediu ao governo egípcio desde 2011 que os incorpore em ações sérias contra os militantes. Seus apelos foram ignorados”, disse Sabry. “Quanto a números, se a comunidade beduína liderasse uma rebelião ou apoiasse os militantes, esse grupo teria milhares de combatentes em suas fileiras, o que não aconteceu até agora.”

Os beduínos foram, porém, padrinhos inadvertidos da atual insurgência por meio de seus canais de contrabando para Gaza. Ligaram militantes palestinos que cruzavam a fronteira em busca de liberdade aos radicais egípcios escondidos na área, que mais tarde eles financiariam e treinariam.  

Fonte, Carta Capital

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