Guerra e omissão na Amazônia
Uma “guerra tribal”, após a omissão de agentes do Estado, teria provocado um massacre de índios isolados da etnia corubo. Servidores da Funai souberam do conflito no fim de setembro. As investigações ainda estão em curso.
Estima-se um total de 7 a 15 mortos. O
incidente no Vale do Javari, no noroeste da Amazônia, fronteira com o
Peru, teve início com o assassinato de dois integrantes da etnia mati em
dezembro de 2014 e se desenvolve em meio a uma profunda crise na gestão
do setor de indígenas isolados da Funai.
As informações até o momento indicam que os mati, após
terem alertado a Funai e solicitado uma audiência com o presidente da
fundação para discutir a pacificação da área, revidaram o ataque dos corubo de dezembro.
As duas etnias compartilham uma região na Terra Indígena
Vale do Javari e, ultimamente, os encontros entre ambas têm sido
marcados pela violência. Após o confronto mais recente, os próprios mati
conduziram um contato forçado com os corubo nas proximidades da aldeia
Tawaya, em 26 de setembro. Inicialmente eram dez indivíduos.
Em 10 de outubro chegaram mais 11. Segundo relatos, os
corubo contraíram doenças respiratórias contagiosas e alguns têm pelo
corpo marcas de tiros. Uma criança recém-nascida morreu na primeira
quinzena de outubro.
Os mati, afirma Marke Turu, da associação indígena da
etnia, fizeram vários alertas à Funai sobre a extensão do conflito,
pediram apoio à fundação e audiências em Brasília, o que não foi
atendido até o momento.
“Se alguma coisa acontecer com os mati de novo, eles podem
querer revidar. Precisa resolver a questão dos corubo isolados que
estão lá. Se não providenciarem uma pacificação, pode ter mais
violência”, alerta.
O Vale do Javari é
a região com a maior densidade de povos indígenas isolados no mundo.
Uma área vasta, protegida, cujas principais pressões sobre o território
atualmente partem de pescadores, caçadores, madeireiros e traficantes.
O primeiro contato com os corubo ocorreu
em 1996, durante uma expedição liderada pelo sertanista Sydney Possuelo.
Nenhum indígena perdeu a vida naquela ocasião, mas um funcionário da
Funai foi morto pelos índios. Desde então, os encontros passaram a ser
ocasionais. O mais comum eram os contatos visuais à beira dos rios.
Recentemente, aumentaram os conflitos
entre isolados e outros povos contatados, assim como os relatos de
epidemias, sobretudo malária, entre os isolados. No ano passado, um
grupo de 16 corubo fez contato com agentes da Funai. Vários tinham
malária ou gripe.
Os mati haviam avisado a Funai da
presença dos isolados em roças, beira dos rios, em encontros eventuais
em caçadas, e estavam preocupados com a possibilidade de confronto. Em 5
dezembro do ano passado, um grupo de seis corubo atacou os mati nas
imediações da aldeia Todawak, no Rio Coari.
No embate morreram Ivan e Dame Matis. A
União dos Povos Indígenas do Javari pediu formalmente o apoio da Funai
na mediação e solicitou uma reunião em Brasília para traçar uma
estratégia de pacificação.
Em carta, indígenas afirmam que o
“problema deveria ser resolvido entre as etnias na forma tradicional”.
Com os apelos ignorados, a associação dos mati atribui as mortes a erros
da Funai cometidos no contato com os 16 corubo anteriores ao
assassinato dos dois integrantes de sua etnia.
Há muitas queixas em relação à fundação.
Mesmo ciente dos riscos de confrontos sangrentos no Vale do Javari e da
necessidade de mais técnicos em campo, Carlos Travassos,
coordenador-geral de índios isolados, deslocou funcionários
especializados para prestar assistência à filha do ministro Aloizio
Mercadante, que produz um documentário sobre índios isolados em Mato
Grosso.
Um dos mais experientes sertanistas da
Funai, em vez de ser enviado para apoiar os trabalhos emergenciais, foi
deslocado para dar suporte às filmagens de Mariana Mercadante, amiga
pessoal de Travassos, e da cineasta Renata Terra, que tentava encontrar
outro agrupamento indígena de recente contato, os piripkura, um subgrupo
tupi-kawahiwa.
Segundo apurou CartaCapital, a tentativa de contato, que serviria apenas para preencher cenas do documentário, não se concretizou.
A Coordenadoria de Índios Isolados vive
uma crise interna. Sertanistas antigos, alguns aposentados e outros em
atividade, formalmente acusaram Travassos de cometer uma série de
irregularidades e de má gestão e pediram em agosto a sua saída do cargo.
Entre os problemas apontados estava
justamente a falta de atenção para o iminente conflito no Vale do
Javari, além de um projeto de cooperação com a organização Centro de
Trabalho Indigenista a partir de um contrato com o BNDES por meio do
Fundo Amazônia.
“Estão privatizando a área de índios
isolados”, acusa Possuelo. O presidente da Funai, João Pedro da Costa,
não atendeu ao pedido de entrevista. Travassos também não quis se
pronunciar.
Todos os indígenas recém-contatados
precisam de assistência especial. No Javari foram 37 corubo ao todo: 21
em setembro, 16 no ano passado. No Acre, dos 38 sapanawa contatados em
junho de 2014, ao menos um foi atingido por pneumonia.
Sem alimentação, parte mudou-se para
perto de uma comunidade não indígena, o que a deixa mais vulnerável.
Também nesse caso antropólogos e indigenistas acusam a Funai de omissão.
O descaso ainda põe em risco os
funcionários da fundação que atuam em campo. Um servidor enviado para
investigar o massacre chegou a ser mantido refém pelos mati, que estão
zangados com o pouco caso do órgão público.
O Ministério da Saúde informou em nota que os casos de
contato com indígenas isolados são tratados como emergência sanitária e
que estabeleceu um plano de contingência para o caso dos corubo.
O isolamento para evitar epidemias é fundamental em
situações de contato, mas politicamente delicado. Por isso a organização
deveria ter sido feita pela Funai, que até agora não colocou em campo
uma equipe para a segurança dos indígenas e dos funcionários.
Fonte, Carta Capital
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